segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Necros.

Inicialmente queimava.

Ou era assim que eu sentia.

Nesses primeiros dias eu gritei e agonizei. Desesperado.

Em vão.

Senti minha pele ficar flácida e junto com os cabelos pouco a pouco se desvencilhar daquilo que chamo corpo. Ainda queimava, e doía. E eu só conseguia pensar nas duas crianças brincando no jardim.

E todas as escolhas que fiz, que de uma maneira ou outra me trariam à miséria. Meus pés doem e a essa altura acho que os globos oculares não se sustentam sobre as órbitas porque a cada hora o mundo parece mais escuro. Não é como nas noites de insônia, em que eu contava uma história e conforme eles adormeciam apagava as luzes para que dormissem em paz.

Aquela tarde bonita, a brisa do campo tocando levemente minha face. Julia estava deslumbrante. E eu lamuriando porque o sinal do 3G estava fora do ar e “precisava” responder alguns e-mails. Fui rude quando ela me ofereceu a geléia que preparara com tanto carinho na noite anterior.

O tempo todo no escritório, em meio a papéis e gente que eu julgava incompetente. Ocupado demais para ir às reuniões e festas na escola das crianças. Da minha sala imponente não vi Damien ser campeão de natação, ou se formar na faculdade. Na verdade só me dei conta de quanto tempo tinha perdido quando depois daquele maldito acidente vi meu filho desfigurado no necrotério.

Julie se foi por tristeza, cerca de dois anos depois. Os pais são feitos para morrer antes dos filhos. Clara juntamente com o marido Jonathan me dariam um neto.

Eu ainda era ocupado demais e a única pergunta que fiz foi sobre como eles criariam um filho com o salário de professor de Jonathan e o trabalho de meio período de Clara. Ela disse que me amava muito. E me deu as costas. Faz quatro anos.

A velhice não chegou para mim. Estou perto dos sessenta anos, e com pulso firme controlo tudo o que com muita dignidade levei a vida para construir. Antes de sentir essa angústia, eu cheguei a me questionar se tudo o que fiz tinha realmente valido a pena.

Agora, deitado e estático. Sendo lentamente digerido por vermes, vejo que talvez não tenha dado o meu melhor naquilo que só depois perceberia ser o que tinha de mais importante. Não me vejo em posição de lamentar ou pedir que meu fim fosse diferente. Se acaso me fosse concedido um último desejo, a última fagulha que não de arrependimento que minha vida emanaria seria talvez para aquele que cavou minha cova. Para que a cavasse um pouco mais rasa, pois assim ainda seria capaz de sentir as gotículas de chuva que enquanto pude ver, me recusei a enxergar.

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Eu ia e vinha...

Eu ia e vinha...
... e era lá que eu me perdia, no espaço entre teus lábios.

Um travessão e uma exclamação.